Floresta Amazônica: a sociobiodiversidade como valor universal
Nunca foi tão forte a tríplice mobilização empresarial, científica e civil para interromper o processo de destruição que se intensifica na Amazônia, cuja magnitude o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios insistem teimosamente em minimizar ou negar.
Do lado empresarial, além das inúmeras manifestações de fundos globais de investimento, os três maiores bancos privados do Brasil divulgaram objetivos e criaram um conselho com alguns dos melhores conhecedores sobre o tema.
A Marfrig estabeleceu metas para rastrear sua cadeia de compra de gado para os próximos anos, chamou para seu conselho de sustentabilidade respeitados militantes ambientalistas e lançou sua iniciativa com a presença de ativistas de destaque. Guilherme Leal, cofundador da Natura, lidera hoje uma Concertação pela Amazônia, iniciativa que reúne 100 nomes, entre empresários, ativistas e cientistas com o objetivo de desenvolver os potenciais da floresta e melhorar a qualidade de vida da população.
Claro que não é difícil apontar o dedo às iniciativas, com a acusação de que elas já deveriam ter ocorrido há muito tempo. Mas não há como negar sua relevância.
A visão de que a Amazônia consiste num almoxarifado (como gosta de dizer o ex-governador Simão Jatene) de riquezas naturais a serem extraídas é repudiada pelos segmentos mais importantes do empresariado brasileiro, ainda que ela esteja solidamente arraigada no espírito do presidente da República.
Se uma prova desta mentalidade for necessária, ela está no que disse Jair Bolsonaro a Al Gore, quando, no Fórum Econômico Mundial de 2019, este manifestou preocupação com a Amazônia, recebendo como resposta do presidente brasileiro recém empossado: “queremos explorá-la e gostaríamos de contar com a ajuda de vocês”. Ao que Al Gore, perplexo, respondeu: “não entendi muito bem o que o senhor quis dizer”.
A mobilização empresarial brasileira acontece exatamente quando um conjunto de 150 cientistas dos nove países que compõem a Amazônia reúnem-se para lançar, no início de 2021, pela primeira vez, um diagnóstico e um conjunto de propostas para “salvar a Amazônia”. A iniciativa, coordenada pelo economista norte-americano Jeffrey Sachs, pelo climatologista brasileiro Carlos Nobre e pela bióloga equatoriana Andrea Encalada, é patrocinada pelo Sustainable Development Solutions Network, das Nações Unidas.
O trabalho terá três partes. Ele vai descrever, em primeiro lugar, a formação histórica da maior bacia fluvial do mundo, dos povos que a habitaram e habitam e sua gigantesca biodiversidade. A segunda parte vai analisar os padrões atuais de ocupação do território e suas consequências, não apenas para a Amazônia, mas para os serviços ecossistêmicos que hoje ela presta ao mundo. Por fim, a terceira parte reúne um conjunto de propostas voltadas à economia da biodiversidade florestal e à luta pela emancipação social de populações, cuja pobreza contrasta de forma chocante com os potenciais da região.
Entre estes cientistas, não são poucos os que pertencem a organizações não governamentais que aliam a defesa dos povos da floresta ao conhecimento científico (publicado nas melhores revistas acadêmicas internacionais) dos principais problemas socioambientais da Amazônia. É do trabalho destes ativistas, com o apoio de organizações filantrópicas brasileiras e internacionais, que vem, com frequência, a organização de base que dá lugar a inovadoras iniciativas empresariais na região. O ativismo socioambiental na Amazônia integra-se cada vez mais a negócios sustentáveis. Só os espíritos que não conseguiram se afastar das ideias básicas da Guerra Fria continuam vendo neste ativismo fantasmas “anticapitalistas”.
Esta composição diversificada de atores empresariais, científicos e do ativismo é talvez a mais promissora expressão de um projeto voltado ao desenvolvimento sustentável na América Latina. É claro que a realização da promessa não depende apenas deste poderoso leque de mobilização social, mas também do Estado, tanto na repressão à invasão de terras indígenas e de áreas públicas, como no planejamento da infraestrutura que tem sido, até aqui, um vetor importante de desmatamento e de grilagem, como mostra o recém publicado relatório do World Resource Institute.
Mas para que esta promessa se concretize é fundamental que ela tenha como ponto de partida alguns valores fundamentais. Valores são atributos de natureza ética, que definem a intencionalidade, as finalidades, a razão de ser das ações humanas. Eles são o ponto de partida de qualquer projeto ambicioso, na esfera pública, privada ou associativa.
O arquiteto William McDonough e o químico alemão Michael Braungart, num importante livro, criticam o bordão recorrente entre as consultorias empresariais de que “não se pode gerir o que não se consegue medir”. Medidas são importantes, é claro. Mas elas têm que ser precedidas por valores, dos quais decorrem princípios, que inspiram objetivos, estratégias e táticas. Só então, medir o que se alcançou faz sentido.
O valor básico no qual se apoia qualquer projeto construtivo para a Amazônia pode ser assim resumido: a floresta é um bem comum da espécie humana e seu uso deve reger-se pelo respeito tanto a sua diversidade biológica como à riqueza da cultura espiritual e material dos povos que a habitam. Isso não quer dizer paralisia econômica ou cultural, e sim uma orientação ética a que a economia da biodiversidade florestal deve submeter-se. Tampouco está em dúvida a soberania de cada um dos nove países amazônicos sobre seu território.
O próprio esforço de elevar com urgência o padrão de vida das populações que vivem na Amazônia tem que se submeter a este valor fundamental em torno do respeito e da valorização da sociobiodiversidade da floresta, É sobre a base deste valor que poderá emergir o que vem sendo chamado de biodiplomacia, ou seja, negociações internacionais cujo ponto de partida é o reconhecimento da importância das florestas tropicais e das populações que nelas habitam para a civilização contemporânea.
As mais importantes organizações empresariais do mundo preconizam hoje que os negócios se orientem por decisões que se apoiem em ciência (Science-Based Targets, para usar a expressão do Fórum Econômico Mundial). E é justamente na ciência, no conhecimento da natureza que podem se originar iniciativas empresariais que tenham na floresta sua base de sustentação e não o inimigo a ser posto no chão.
Inovação científica e tecnológica, aumento na oferta de bens e serviços e ganhos de escala produtiva, pagamentos por serviços ambientais e inúmeros outros objetivos econômicos só serão sustentáveis se forem regidos pelo valor ético e universal representado pela sociobiodiversidade florestal.
É apenas um ponto de partida, claro, mas sem ele abre-se o caminho para que a sustentabilidade se converta em retórica para encobrir as piores práticas.
Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP.
Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza”
(Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
Fonte: Blog Envolverde